#2 - E andei lendo Darcie Little Badger...

Sobre edição de Relicarium 2, ficção de autoria indígena e algo entre um e outro

Olá, para quem está por aqui!

Consegui o feito de não atrasar a segunda newsletter do mês! Muito feliz com isso, espero que continuemos assim, e espero que vocês todes estejam bem na medida possível que o atual apocalipse climático permita (se informem em suas localidades formas de impedir transtornos respiratórios, algumas cidades recomendaram uso de máscara e evitar atividades físicas em horários de picos de calor como quando o sol esta a pino. E se hidratem! E se protejam! E principalmente: cacem candidaturas locais que estejam alinhadas com a pauta ambiental. Mais que nunca, precisamos ter certeza que vai ter alguém lutando nos campos políticos para impedir que mais biomas sejam queimados de forma terrorista como estão sendo hoje em dia).

Nesse período entre cartas, ainda não decidi completamente o que fazer em relação a escrita. Como comentei, fim de semestre acontecendo e era saindo de prova para apresentação de seminário, se informando quando provas são adiadas e recalculando rotas de estudo, mas acho que cada vez fica evidente que vou focar em Relicarium volume 2 antes. E de certa forma, apesar de navegar entre minhas três grandes opções nesses dias, acabei focando mais na continuação da jornada do Darren. Voltei a editar alguns capítulos, e acabei apagando todos os últimos capítulos que havia escrito. Eu consegui aproveitas 17 capítulos dessa revisão, mas ao chegar no 19° (depois de pular a escrita do 18° por motivos a serem revelados no futuro), acabei decidindo que precisava reescrever mais. Decidi que alguns personagens que iriam aparecer seriam cortados, porque veja bem: esse livro tem muita gente. Excetuando os personagens menores, há pelo menos treze personagens sendo trabalhados ao longo do livro. Muitas tramas acontecem ao mesmo tempo (inclusive se preparem que é um romance muito mais polifônico que o primeiro, aqui a gente sai bastante do ponto de vista do Darren), e esses personagens cortados, apesar de amá-los, não conseguiam se encaixar por completo na trama.

Uma pena porque parte da demora de Relicarium 2 foi o processo de pesquisa para justamente escrever esses personagens. Desde o começo do planejamento de Relicarium, eu queria que a saga fosse o mais diversa possível, não pela aquela necessidade estranha do mercado de tabelar as mil minorias existentes para vender um produto, mas porque Relicarium não é só uma narrativa a respeito de jovens no Terceiro Ano do Ensino Médio enfrentando o ENEM e seres fantásticos, mas também uma narrativa sobre o Ceará.

A ideia de escrever Relicarium foi criar uma fantasia que fugisse do padrão de histórias de fantasia que eu lia quando adolescente e começo da vida adulta. Quando você se depara com a centésima trama colocando magos no meio do Central Park, você começa a ter a mesma reação física de quem tá comendo o mesmo tipo de bolo há cinco anos. Você pode até gostar ainda do sabor, mas vai respirar fundo para não enguiar, como se diz no dialeto cearense. Lá em 2018 (um minuto de silêncio ao perceber há quantos anos tô com esses personagens), minha principal meta era escrever uma fantasia que se passasse em Fortaleza, que enchesse as avenidas com seus engarrafamentos de magia, os pontos turísticos de perigo e as ruas que eu conhecia tão bem de algo diferente do que o que já conhecia pela ideia de realidade.

Nesse processo, eu queria também refletir a própria diversidade cearense. O Ceará é um estado repleto de grupos étnicos dos mais variados. Podemos não ter a maior população negra fora da África como acontece na Bahia, mas isso não apaga a existência de um estado repleto de pessoas negras, amarelas (hoje em dia mais coreanos em comparação a antigamente com um grande número de imigrantes chineses), romanis, de terreiro, e o fato que o Ceará tem pelo menos 15 povos indígenas reconhecidos atualmente pelo governo. Por conta dessa diversidade, eu queria muito que o segundo livro de Relicarium tivesse a presença de personagens indígenas (especificamente da etnia Tremembé, um povo do mar).

Passei um ano e meio pesquisando para escrever o segundo livro. A própria trama do livro modificou-se durante esse período (ainda que de uma forma que não atrapalhava minha escaleta principal de eventos dos três livros. Prometo explicar isso melhor no futuro), não completamente, mas significativamente. Esse processo de pesquisa foi incrível também como forma de crescimento de consciência étnica-racial. Conheci muito sobre a questão indígena no Brasil e no Mundo por conta desse processo. Diversos artistas e culturas se revelaram nesses anos, porque eu realmente mergulhei em não apenas ler trabalhos etnográficos, mas ouvir o que as próprias pessoas indígenas tinham a dizer. Cheguei a fazer um curso de Museologia Indígena Cearense com líderes de povos daqui como os próprios Tremembés e os Tapebas da Caucaia.

A trama do segundo livro chegou a passar por uma leitura sensível. Não o manuscrito, mas a ideia em si, porque em determinado momento da pesquisa, eu não sabia se estava fazendo ou não um bom trabalho. Eu sabia que tinha pesquisado bastante, eu tinha argumentos que me davam a sensação que estava tudo bem na abordagem que eu estava procurando, mas não tinha certeza. Sou um homem branco, não tenho certeza a não ser na minha própria existência, e mesmo nela eu posso me enganar. Acabei contratando a leitura sensível de uma pessoa indígena que admiro muito e que trabalha com livros. A ideia estava aprovada, no maior limite de alguém fora da comunidade a qual os personagens viviam poderia analisar, mas não havia nenhum erro grave na proposta de abordagem.

Só que nesse período de retorno, ao entrar em contato com texto, eu percebi que não conseguia manter esses personagens. Lutei muito para evitar esse corte, não apenas pelo meu apego a pesquisa e esforço dedicados ao processo, mas porque acreditava nos personagens, gostava deles e adorava a ideia de que a diversidade do livro pudesse aumentar.

Em Teoria da Literatura, uma das cadeiras a qual curso atualmente, os textos acadêmicos de outros escritores e pesquisadores sempre pontua como o escritor não deve escrever com a emoção, e sim com a razão. Horacio Quiroga faz uma versão dos Dez Mandamentos ao enunciar verdades a respeito do processo da criação de texto. Um desses mandamentos sugere que a emoção só é válida na construção após a volta do escritor ao texto. Após já ter escrito, analisar se a emoção se mantem, e se mantiver que ótimo, mas antes escrever pensando racionalmente, estruturando, escolhendo as melhoras palavras e meios para aquela história.

Eu posso ter todo um apego a minha versão mais jovem que passou um ano e meio pesquisando, juntou dinheiro e se esforçou em fazer o serviço bem feito, mas em termos racionais, hoje em dia não faz sentido. Não consigo ficar confortável de colocar personagens de determinado grupo social numa narrativa apenas para satisfazer a ideia de que uma obra tem que ser diversa. A diversidade é algo importante, mas instrumentalizar e sentir que não estou investigando a natureza dos personagens de forma apropriada não é confortável. Em comparação com os outros personagens, esses personagens a serem descartados soam muito como acessórios. Por mais que eu saiba bem seus backgrounds, dentro do compasso narrativo eles não estão alinhados. Relicarium 2 trabalha muitos personagens do primeiro livro, e todos eles estão girando organicamente, fluindo para o caminho que precede as conclusões no futuro terceiro livro. De acréscimo em relação ao primeiro livro, apenas quatro personagens são introduzidos como novos na trama, e todos eles continuam importantes no último livro. Sensorialmente, é como se eu tentasse encaixar peças de quebra-cabeça em um quebra-cabeças já montado. Pode ter a mesma forma de uma das peças, mas não está encaixado, está sobrando. Se eu inclinar a mesa, é muito fácil escorregar sem perturbar a imagem geral da história.

Não fico confortável de, dentro de uma saga, trabalhar os personagens indígenas como importantes em um único livro que está no meio. Não acho que isso seja uma regra a ser seguida por ninguém. Entendam que é um estudo de caso do meu livro, mas dentro de uma lógica dessas é muito fácil sentir que esses personagens caem no estereótipo do Negro Mágico, ou nesse caso, do Indígena Sábio. Uma figura de sabedoria e apoio que só está ali para isso. Momentânea, uma ajuda no meio do caminho para os personagens principais (mesmo que eles possam ser de outras minorias) continuarem sua jornada.

Por conta disso, parte da reescrita da última parte de Relicarium 2 (e já estou na reta final da história), envolve reestruturar os elementos para que essa fantasia seja condizente com os personagens e uma proposta de abordagem respeitosa.

Estou trabalhando nisso, vamos ver como vai ser o resultado final.

Agora, o curioso é que essa newsletter tinha uma proposta que era de falar da ficção da Darcie Little Badger, porque nas últimas semanas finalizei a leitura de Elatsoe, e acabou gerando uma reflexão sobre o processo criativo atual.

Aproveitando então, para apresentar personagens indígenas, vamos conversar sobre Darcie Little Badger. Para quem não conhece esse nome, Darcie é uma autora indígena do povo Lipan Apache (povo originário de terras a qual conhecemos hoje como a fronteira dos EUA e do México, dentre elas o Texas e outros estados próximos), que trabalha principalmente com a ficção especulativa (possuindo alguns ensaios de não-ficção também). Até agora, ela já lançou três romances, das quais já completei a leitura de dois.

Foto da autora Darcie Little Badger. Ela é uma mulher de pele clara, cabelos escuros preso num tecido à cabeça, olhos amendoados. Está sentada perto de uma casa de madeira e uma grade que dá para uma floresta. Usa vestido quadriculado preto e branco e um colar com várias voltas de contas vermelhas.

Meu primeiro contato com algum romance da autora (eu já cheguei a ler um conto dela na coletânea de ficção especulativa decolonial News Suns, mas não tinha gostado tanto do conto) foi em A Snake Falls To Earth, que narra duas linhas de acontecimento que em determinado ponto do livro acabam se encontrando: a primeira é Oli, um espírito de mocassim d´água (um tipo de serpente aquática originária das terras dos Lipan Apache) que viaja pelo mundo espiritual procurando um novo lar e no caminho conhecendo outros espíritos e monstros. No nosso mundo, conhecemos Nina, uma garota indígena do povo Lipan Apache, que está procurando uma forma de criar uma espécie de dicionário ou registro da língua do seu povo a partir do conhecimento herdado por sua avó. Como muitos povos indígenas ao redor do mundo, os Lipan Apache tiveram a língua suprimida, e houve uma diminuição dos falantes (ainda que haja contínuos esforços para manter a língua e ensinar seus integrantes, preservando-a). Vemos então o esforço de Nina e a utilização da tecnologia como forma de criar esse acervo linguístico. Inicialmente, o livro separa esses dois personagens em conflitos completamente opostos (um envolvendo a espiritualidade, outro a relação com tecnologia e dramas mais humanos), ainda que haja um ponto em comum: tanto Oli quanto Nina lutam pelos seus próprios territórios. É com a ameaça de uma catástrofe que ambos acabam se conhecendo, e lutando juntos.

capa de A snake falls to Earth. Mostra a ilustração de uma moça indígena de longos cabelos escuros, usando regata amarela, saia marrom com uma cobra aos seus pés. A moça ouve algo em um fone plugado a seu celular e segura um caderno/livro.

Eu amei esse livro. Lembro que foi uma leitura super fluída, engajante e rápida. As mudanças de tom entre os dois personagens não eram completamente estranhas, e havia um brilho imenso na forma como Darcie descrevia o Mundo Espiritual do Oli. É um livro mais próximo do infanto-juvenil, com boas reflexões a respeito de língua, herança étnica, amizade e outras questões. Oli é um personagem absurdamente adorável, um daqueles personagens que queremos muito conhecer e ser amigo. Há um carisma absurdo nesse livro, e na forma como é conduzido.

Mas nada havia me preparado para Elatsoe, o livro de estreia da autora. Acabei comprando ele numa promoção de ebook, e demorei um bocado de tempo para ler (ao ponto que quando li, já fazia pelo menos um ano e meio que tinha sido lançado no Brasil), mas quão satisfatório foi finalmente lê-lo. Enquanto Snake possui uma atmosfera relativamente mais leve, Elatsoe entra em terrenos mais sombrios. A história segue Elatsoe (“beija flor” na língua Lipan Apache), uma jovem indígena que vive numa realidade em que todas as magias são reais. Tanto as do povo dela como de outros povos. Seu melhor amigo, por exemplo, é um rapaz branco descendente dos elfos europeus; o cunhado dele é um vampiro, e mesmo Elatsoe possui uma habilidade mágica herdada de seus ancestrais de se comunicar com os mortos, sendo capaz de ainda ter seu cãozinho fantasma ao lado. O dia a dia dela muda quando chega a notícia de que seu primo não apenas morreu, como foi assassinado, e recebendo uma mensagem em sonho dele, Elatsoe e a mãe viajam para a cidade do primo para investigar o que aconteceu de fato.

Capa de Elatose. Em meio a uma matilha de cães fantasmas brancos, há uma moça indígena de cabelos um pouco longos e escuros, vestindo um sobretudo fechado marrom.

E que viagem. É curioso ler esse livro depois de Snake, e pensar nas diferenças de abordagens. Snake é um livro infanto-juvenil, tem uma abordagem mais leve, mira em outro público, enquanto Elatsoe ousa muito mais em como abordar sua fantasia e seus temas mais pesados. Ainda é um livro jovem adulto, óbvio, mas é surpreendente como Darcie não vira a cara para os complexos sentimentos de luto envolvendo o assassinato de um homem indígena. Há um cuidado na forma de abordar essa morte, passando tanto pelos conflitos gerados pelas próprias tradições funerárias dos Lipan Apache (ao não falarem o nome do falecido, e não divulgar o seu local de enterro, causando alguns atritos com a esposa não-indígena do primo de Elatsoe), como o processamento particular da perda em cada um dos integrantes da família. Esse tema da morte indígena também perpassa a principal crítica do livro: a forma como os brancos dão importância ou não a vida de outros povos. Sabe o slogan famoso de a carne mais barata do mercado? Não vou dar spoilers da trama principal, mas digamos que Darcie usa de sua fantasia para apontar o tratamento cruel do governo dos Estados Unidos contra os povos originários, a forma como rouba e mata pessoas indígenas indiscriminadamente. Há uma metáfora na trama principal que facilmente pode ser traduzida como a instrumentalização da morte de pessoas originárias para o progresso de uma Nação (como é o cerne da questão de povos indígenas ao redor do mundo. O desmatamento de suas florestas, a destruição de suas línguas e costumes, são sempre justificados pelo bem da evolução da nação fictícia a qual algumas vezes chamamos de Brasil, EUA, Canadá, Noruega, Rússia, Chile,…)

E é por sua própria perspectiva da fantasia que Darcie traz um fôlego novo ao gênero. Além de saber equilibrar muito bem a ideia de mundo com sobrenatural latente, conhecido e reconhecido pelas pessoas não-mágicas (algo que me agrada bastante, porque Relicarium segue o mesmo princípio de que o sobrenatural é reconhecido de forma geral por todas as pessoas, ainda que haja discussões sobre sua própria natureza), Darcie brinca com as diferentes manifestações sobrenaturais e suas implicações étnico-raciais. Os aneis de fadas dos povos da Europa são transportes regulamentados, mas muito restritos para um povo em específico, por exemplo. A ideia de vampiros serem expulsos de um lar a qual não são convidados ganha outra dimensão quando uma pessoa indígena considera toda uma enorme extensão de terra seu próprio lar. São várias ideias muito bem trabalhadas ao longo da trama, que traz um mundo coeso e bem explorado. Os próprios poderes de Elatsoe garantem histórias dentro da história e momentos criativos e inspirados.

 Elatsoe e A Snake falls to Earth são dois incríveis livros de fantasia de autoria indígena que recomendo muito. Penso muito como é incrível que finalmente estamos tendo mais chances de ler outras perspectivas de fantasia. Quando eu era adolescente, a esmagadora parte da fantasia publicada no Brasil tinha um fenótipo e cultura bem específicos. Não que não houvesse gente publicando antes, mas não tinha o mesmo espaço que estamos encontrando hoje. Saber que fantasia escrita por diferentes grupos sociais está alcançando pessoas é uma forma muito bonita de saber que a magia está sempre se renovando entre as pessoas.

Atenciosamente,

Matheus Monteiro

Melhor filme da quinzena: Assisti oito filmes durante esse intervalo, e como a newsletter já está muito longa, vou indicar só o melhor que eu vi esse tempo, que foi Garra de Ferro dirigido por Sean Durkin. É a cinebiografia de uma família real de lutadores de luta livre, e a sua ascensão e queda. É o típico filme do gênero com a mesma velha estrutura, mas aqui encontra uma coisa diferente ao explorar a queda como um filme de horror. Ainda é um filme de drama, mas há uma perturbação psicológica que perpassa a segunda metade da história muito parecida com um horror de maldição. E curiosamente, o filme se utiliza da ideia de maldição de um sobrenome para criticar a masculinidade tóxica, a fome da glória e filhos sacrificados por um pai ambicioso. É pesado, denso, e absurdamente triste, principalmente quando olha com carinho para o afeto dos irmãos criados em um ambiente desprovido de afeto para logo depois esmagá-los. Recomendo muito.

Atenciosamente,

Matheus Monteiro